sexta-feira, junho 23, 2006

trecho de "sem título"

Eletronicamente acordo. O gato já está miando. É quase como um choque de 220W no cérebro semi-desperto. O sono não foi suficiente. De qualquer forma, é hora de levantar. Preciso. Faz quase vinte anos que abri os olhos pela primeira vez, mas desde que me lembro a sensação é a mesma.
Esfrega os olhos com as costas das mãos, no mesmo momento, e estica-se um pouco. Sinto-me quase sonâmbulo. Segue tateando as paredes no corredor escuro até sentir o frio dos azulejos na palma das mãos.
Acendo a luz. A claridade quase cega. As pupilas contraem-se, as cores começam a se formar.
Gira o registro. O vapor invade o banheiro quase que instantaneamente. Deveras, agora temos frio, e inverno. É dia 21, lembra-se. Passou-se quase metade do ano.
E ele ainda está em marcha lenta.
A água quente acorda os sentidos. Esquenta o corpo, agora não tão frio. Sente como se a água levasse embora todos aqueles pensamentos que não o deixaram dormir direito.
Auto-engano, eu sei. Sei que hoje é um dia como outro qualquer, mas gosto de pensar que pode ser especial. Gosto de pensar que talvez hoje, por algum motivo, o mundo leve a rotina pra longe de mim. Essa rotina, igual para tantos.
Seca-se com a toalha úmida. Nada me irrita mais que isso. É como estar envolvido por um corpo que não aquele que se deseja. Assim encaro a toalha. Com desdém. E usa.
Me visto com as primeiras peças que encontro. Hoje não é um dia para me preocupar em como me vestir. Nem como me portar.
Saio. Apressadamente. Esqueço da comida do gato. Ele é melhor que eu pra encontrar o que precisa. Nem me preocupo.
Está quente para o primeiro dia de inverno, ao contrário do que pensou antes. O sol morno aquece, eriça os pelos. Entra pelos poros, acorda cada centímetro do corpo, como se fosse o verdadeiro toque de despertar.
Ele segue seu caminho sem levantar os olhos do chão. Os carros passam rapidamente. Não importa. Não quer ver quem está ao volante, está com a mente tão longe que essa proximidade iria causar assombro. Quase que um fantasma invadindo o pensamento de alguém que pensa que talvez esteja sozinho no mundo. Cercado deles.
Sigo olhando para o céu. Como pode? Ontem chovia tanto que minhas meias estavam encharcadas. Maldita hora que o guarda-chuva ficou em cima da escrivaninha. Minha bolsa nem pesava tanto assim.
Chega ao destino, e vê o onibus aproximando-se. Pelo menos isso, pensa aliviado. Entra, e tenta não olhar para os lados. Detesta a expressão curiosa das pessoas que já estavam indo para seus trabalhos quando alguém passa pela catraca.
Já estou a caminho, e observo como a paisagem é sempre a mesma, mas sempre diferente. Nunca os mesmos fatores, nunca as mesmas pessoas. O mar nunca é o mesmo.
Sente-se vazio. O mar parece levar o pensamento ainda mais além. Quase desprendendo do corpo. Quem sabe fosse melhor assim. Ele está cansado de pensar. Talvez se sentisse melhor se fosse apenas um amontoado de células. Mecânicas.
As convesas de ônibus sempre me mantém distraído. Engraçado como o dia começa diferente para cada um. Engraçado ver aquele menino vidrado nas janelas, sem expressar nada. E aquela menina que sorri olhando para o celular. E aquela mulher que está visivelmente aborrecida. Mas todos saíram de casa. Todos sentiram o mesmo sol.
E por quê nem todos sentem vontade de viver?
Talvez os dias não sejam desvinculados, realmente. Talvez nem todos consigam deixar no dia anterior as pequenas tragédias. Talvez meu coração seja pequeno demais, ou tenha problemas de memória.
Gosto de pensar que tem memória seletiva.
Espirra. Detesta essa gripe, quase que eterna. Um homem magro demais chama sua atenção. Parece aqueles personagens do Almodovar. Sente pena.
Todos os personagens do Almodovar tem graves problemas.
O onibus para, eu desço. Agora caminho até o trabalho.
Hoje, decido tentar outro caminho, alterar o numero de passos, as casas e prédios.
Alterar a rotina.
Segue rapidamente pela calçada, pensando em como esse dia podia acabar rápido.
Não suporta mais esses dias semelhantes. Não foi feito para se sentir acomodado.
E nem sabe o que incomoda.
E assim, o dia começa para todos. E nem todos começam o dia.

4 comentários:

Anônimo disse...

será q é por isso q eu gosto tanto de dormir?
Queria muito dormir muito muito mesmo. E acordar com várias coisas resolvidas, heh pena q não dá.

Anônimo disse...

Achei esse melhor que o outro! mais introspecto :**

Debra. disse...

não paro de pensar nessas coisas todas há dias, não paro de me peguntar por que levantar - e então levanto pela metade.

Debra. disse...
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