Acorda sozinha. Pra quê esse barulho chato de despertador se faz tanto tempo que acorda sozinha?
Desce em passos firmes e automáticos uma escada que sabe de cor. Todas as rachaduras.
Esquenta a água em bocejos. Escuta os passos que conhece há mais de trinta anos.
Escuta aquela voz que reconhece há mais de 40 anos. E agora ela pede por café, não por carinho ou atenção.
Pó escuro no tecido claro, água quente e vapor sobre o pó. Um cheiro inunda a casa e tapa seus ouvidos para os pedidos do corpo que ela mais conhece. Acompanha o vapor, saindo pela janela e misturando-se ao ar gelado desta manhã.
Deixa o pó e a água. Deixa o vapor. Faz o caminho contrário deste, que sai. Entra cada vez mais dentro do lugar que chama de casa, lar.
Sobe os degraus sem ver as rachaduras e os ácaros do tapete.
Senta-se na cama, na colcha, presente de casamento. Hoje é um dia para bem vestir-se.
Escolhe o vestido mais bonito. Aquele verde, que quem sabe ainda sirva.
Um vestido de festa, que dia feliz!
Percebe um rasgo, talvez do tempo, talvez de calcanhares. Decide consertar o que um dia foi estragado.
A caixa de costura de madrepérola sobre o colo, linha na agulha.
Enquanto une os dois lados do cetim, sem se preocupar o quão perceptivel será o reparo, une o que foi e o que é. Sendo que, o que foi não será nunca mais.
Tantos anos, tantos anos assim, como esse vestido.
E agora, até ele está gasto.
A cada ponto, um ponto. Suas conclusões a assustariam, caso fosse mais jovem. Hoje ela sabe.
Delicadamente, tira os pijamas. Se vê nua no espelho. Toca a pele, sente o toque. Ainda mantém a forma, e nunca tivera medo de perdê-la. Medo de envelhecer. Agora, tem medo de nunca ter sido jovem.
Veste o vestido, como quem quer ser novamente o que um dia era. Calça os sapatos de festa, o única par que resta. Cuidadosamente coloca pérolas na orelha, no pescoço. Elas pesam como nunca.
Desce as escadas com a chave do carro nas mãos. Ignora as palavras que ecoam da cozinha pela casa toda.
"Posso mesmo ter enlouquecido."
Senta-se no carro. Ignição. Fixa os olhos. Detesta dirigir, mas o faz bem. E faz bem. E hoje, particularmente hoje, tem prazer nisso.
Segue o caminho que mais machuca. Acelera, ofega. Ansiosa, dirige sem o cuidado que teria.
Com os pés na areia, a mesma areia que conheceu sem saber. Tantos anos atrás, essa praia foi sua casa, sua vida, seus olhos.
Olhos agora molhados.
O rochedo onde via as estrelas, luas, nuvens e sonhos agora serve como lugar para descansar. Deixa as ondas acalmarem o coração. Deixa o vento acariciar os cabelos e levar todos os pensamentos além. Sente o cheiro de maresia e nostalgia. Sente a essencia do paradeiro. Sente a pele renovada. Sente-se jovem novamente.
E não suporta as mentiras da vida.
Arranca as pérolas da orelha. Devolve ao mar.
Arrebenta o colar do pescoço, vê o brilho rolar.
Segue os grãos de areia envoltos.
Sempre tivera vontade de voar, e hoje voa, pela primeira e ultima vez.
Sempre quisera o mar, e hoje ele é dela.
Sempre amara viver, e ainda ama.
Mas tudo tem hora para acabar.
E ela soube esperar pelo momento exato.
E nunca teve tanta certeza.
Com os pulmões cheios de sal, sente o gosto doce de quem foi até o fim.
fim.
(discos quebrados pra ver se você vem)
Um comentário:
Triste, chocante e cru.
Adorei.
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